25 de junho de 2019

Justiça discute soluções para aumento da violência contra mulheres indígena


“Quando decidi cursar faculdade, sofri muitas críticas. Mas não desisti nem me calei. Pelo contrário, resolvi contar sobre as violências que vivemos e encontrei muitas mulheres que me ajudaram a falar sobre nossa realidade. Às vezes, tinha de esperar o marido delas sair de casa para que conseguissem falar sobre o que passaram. No fim, acabei transformando toda essa experiência em conhecimento”. O depoimento da indígena Ilda Pereira dos Santos ocorreu durante a realização de um curso inédito sobre a utilização das novas mídias sociais no enfrentamento à violência doméstica, oferecido pela ONU Mulheres e o Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul (TJMS), no começo de junho, às lideranças indígenas de Dourados, cidade a 229Km de Campo Grande.

Durante os três dias de encontro, que contou com o apoio do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), lideranças indígenas, profissionais da saúde, da assistência social, e da Justiça expuseram o difícil acesso de mulheres e crianças (principalmente) aos direitos fundamentais estabelecidos em leis e tratados internacionais, mas frequentemente violado.

A pesquisa da pedagoga guarani expôs a banalização da violência de gênero na Reserva Francisco Horta Barbosa. Somente este mês, duas mulheres foram assassinadas na aldeia, vítimas de feminicídio. Foram entrevistadas 17 mulheres, de 19 a 51 anos. Nove disseram ter sofrido violência física, como surras, tapas ou queimaduras, e duas revelaram ter sofrido violência sexual.

Todas as parentas (como as indígenas chamam umas às outras) que responderam o questionário revelaram já terem sido vítimas de violência ou presenciado algum tipo de ocorrência. Ouvir as vozes das mulheres indígenas é um importante passo para ajustar a aplicação da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) nas aldeias. Na cidade de mais de 200 mil habitantes, 16 mil descendem dos povos bororó, terena, kaiowá e guarani.

Para Jaqueline Gonçalves, uma das lideranças femininas de defesa do povo indígena e representante do Kunangue Aty Guasu (Grande assembleia das mulheres kaiowá e guarani), há muita dificuldade para se falar sobre o assunto nas aldeias. “Não se quer discutir a violência sexual, o estupro, o assédio, o corpo da mulher. Quase nunca conseguimos falar sobre isso. É nesse sentido que precisamos de um espaço de diálogo”, diz.

Ouvi-las é exatamente o que quer a Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul (TJMS). “Para produzir projetos específicos, voltados a esse grupo, uma vez que as indígenas têm vulnerabilidades e características diferentes das mulheres brancas, moradoras de cidades grandes”, diz a coordenadora do órgão, Jacqueline Machado, juíza da 3ª Vara de Violência Doméstica e Familiar de Campo Grande (MS).

Entre os desafios apontados pelas mulheres indígenas estão dificuldades para fazerem os registros de denúncias. As aldeias são muito distantes das delegacias; não possuem acesso à internet; e muitas não conseguem se fazer entender em português.

“Sem contar que, dentro da aldeia, quem fiscaliza o cumprimento da medida protetiva? Será que essa mulher não pode ficar ainda mais vulnerável a outras violências dentro da aldeia exatamente porque pediu proteção? É por isso que precisamos escutar a voz dessas mulheres. A solução para ao menos minimizar o problema da violência nas aldeias vai nascer desse entendimento”, afirmou a magistrada.

Criminalidade e vulnerabilidade

Segundo o Ministério Público Federal (MPF), não somente a reserva de Dourados, mas outras comunidades indígenas do estado vivenciam uma escalada sem precedentes nos índices de criminalidade, enquanto o policiamento não acompanha esse cenário. Somente em junho, segundo dados da Polícia Civil de MS, foram registrados na área seis assassinatos.

“Há vários crimes que ocorrem diariamente nas aldeias. A gente chama a polícia, eles se fazem de cegos. Tem venda de droga aqui ao lado da reserva e todo mundo sabe onde acontece. É escancarado. Se tem uma briga, uma situação perigosa, eles dizem que não podem fazer nada. Aqui só entra a polícia para levar os corpos embora. Aí eles entram. Quando já não há mais jeito. A vida indígena não vale muito, nós nos sentimos invisíveis”, desabafa outra liderança, sobre o (não) atendimento policial na reserva.

Outros líderes presentes ao encontro concordaram que a drogadição e o alcoolismo têm contribuído para o aumento nos casos de violência e ressaltaram que a mulher indígena acaba sendo diretamente impactada, pois sofre com a vulnerabilidade de ser mulher, somada a dificuldade econômica e social permanente das comunidades onde vivem

Vários parceiros da sociedade civil e do Sistema de Justiça vem buscando ouvir a voz das mulheres indígenas, estimulando a mobilização e a participação de suas lideranças, dentro e fora de suas comunidades. É o caso do Projeto Voz das Indígenas, da ONU Mulheres, que liderou o curso, voltado à comunidade indígena de Dourados. O CNJ apoia as parcerias dos tribunais com os organismos não governamentais, assim como entidades públicas, no sentido de fazer valer a proteção da vida, e o cumprimento das leis brasileiras e dos tratados internacionais, ratificados pelo país em relação aos povos, de preservação de sua gente e suas culturas.

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