26 de abril de 2018

Ativistas querem juízes protegendo pessoas contra as ‘fake news’


Quem lê uma notícia atualmente pode garantir que é verdadeira? Responder a essa pergunta ficou mais difícil depois da disseminação global das fake news na internet, principalmente quando 90% da população acessam conteúdo noticioso on-line. Estudiosos em comunicação identificam no fenômeno uma potencial ameaça à democracia, sobretudo depois que notícias imprecisas e até mentirosas influenciaram decisivamente comportamentos do cidadão em eleições em diferentes países.

Para equilibrar a liberdade de expressão e o direito à informação no Brasil, esses especialistas defendem a atuação do Poder Judiciário em casos de uso abusivo da liberdade de expressão.

A Lei n. 12.956, de 2014, que ficou mais conhecida como Marco Civil da Internet, atribui ao Judiciário o poder de decidir sobre conflitos relacionados não apenas às fake news, mas a qualquer conteúdo na internet que ofenda um cidadão em particular ou um grupo social específico. Quem se sentir ofendido deve denunciar ao provedor de conexão qual página da internet ou qual publicação divulgou o insulto.

Cabe ao provedor de conexão avaliar a retirada do material do ar, o que normalmente ocorre apenas em casos de violação explícita a reputações. Se o conteúdo for mantido, o ofendido deve procurar a Justiça. O provedor só poderá ser responsabilizado pela Justiça caso desobedeça ordem judicial determinada para remover o conteúdo.

A norma protege direitos individuais contra eventuais abusos, segundo a advogada Flávia Lefèvre, que representa o terceiro setor no Comitê Gestor da Internet (CGI.br). “O Marco Civil determinou que as queixas possam ser apresentadas aos juizados especiais, inclusive, para dar mais celeridade à tramitação desses processos. O Poder Judiciário é fundamental. Quem vai julgar o que é abusivo é o Poder Judiciário”, afirma a conselheira da entidade, que estipula diretrizes estratégicas ligadas ao uso e desenvolvimento da Internet no Brasil.

De acordo com a ativista do direito humano à comunicação Bia Barbosa, o Código Penal também defende pessoas físicas contra crimes que atacam a honra, a reputação ou direitos de personalidade. “Para responsabilizar quem ofende um cidadão com conteúdo, já existe a lei que prevê no Código Penal os crimes de difamação e calúnia, com os agravantes se o crime acontecer no ambiente da internet”, afirma a jornalista e coordenadora do Intervozes, organização da sociedade civil que defende o direito à comunicação e à liberdade de expressão.

Fake news e a Justiça

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) instituiu em 2012 o Fórum Nacional do Poder Judiciário e Liberdade de Imprensa. O objetivo da iniciativa é promover ações que garantam a liberdade de imprensa e o direito à informação. Nomeado pela presidente do CNJ e do Supremo Tribunal Federal (STF), ministra Cármen Lúcia, como coordenador da Comissão Executiva do Fórum, o conselheiro Márcio Schiefler reconhece a centralidade da Justiça no debate sobre fake news e valoriza o poder do senso crítico dos cidadãos.

“Devemos lembrar que também a imprensa tradicional merece o discernimento dos seus destinatários. No caso das chamadas redes sociais, embora seja mais difícil coibir a circulação de notícias falsas, o Poder Judiciário, como guardião das liberdades, tem tomado medidas para reprimir, seja em âmbito civil ou eleitoral, seja em âmbito criminal, condutas que maculem a sagrada liberdade de expressão.

Todos nós, como cidadãos, devemos adotar uma postura rigorosa ao recebermos e, principalmente, ao retransmitirmos as notícias em circulação”, afirmou o conselheiro Schiefler.

files/conteudo/imagem/2018/04/b9272e6020d66f6df59107fe6c3197d5.png

Democracia ameaçada

Fake news não é uma invenção contemporânea, mas uma praga de nome estrangeiro (“notícias falsas”, em inglês) que pode causar dano a algo maior, como a democracia, na medida em que a veiculação de notícias imprecisas, descontextualizadas ou simplesmente inverídicas tem formado opinião e afetado o debate político.

Quem lê o quê

Tanta influência se deve à transição nos hábitos de consumo de notícia, dos meios de comunicação de massa para a internet, e não só nos países desenvolvidos. A predominância da internet e das redes sociais na vida social tem influenciado, direta e indiretamente, quem lê o quê.

Como se lê

No Brasil, 68% da população já acessam a internet, de acordo com o Relatório de Notícias Digitais 2017, da Universidade de Oxford e do Instituto Reuters. Para 90% da população brasileira, a principal fonte das notícias que consomem é a internet (redes sociais, inclusive), mas 78% ainda se vale do telejornalismo.

Relatório de Notícias Digitais 2017

De acordo com a advogada Flávia Lefèvre, o monopólio das plataformas onde se consome notícia atualmente também explica a relevância do problema das fake news. “As plataformas cresceram muito rápido. O Google é de 1995 e o Facebook, de 2004. Hoje alcançaram abrangência absurda, a ponto de não terem concorrência. Assim, eles atuam em escala de monopólio no planeta” diz a especialista. Segundo o Relatório de Notícias Digitais 2017, o Facebook é a rede social preferida para acessar notícia no Brasil – 57% dos entrevistados disseram recorrer a ele e 46% se utilizam do WhasApp.

Principais Redes Sociais acessadas em busca de notícias

Consumir notícia no Facebook ou no WhatsApp é um hábito compartilhado pelas classes C, D e E – grupo ao qual pertencem 61 milhões dos 73 milhões de famílias brasileiras, de acordo com a Consultoria Tendências, segundo dados do jornal Valor Econômico de novembro de 2017. De acordo com a especialista do Comitê Gestor da Internet, como esse enorme contingente populacional consome pacotes de dados pré-contratados, que limitam o acesso à internet, durante boa parte do mês os clientes brasileiros só podem acessar as duas redes sociais que figuram como campeãs em consumo de notícia.

 

files/conteudo/imagem/2018/04/e56298e2b093bd9fb1a1eab87985786a.png

Filtro

Uma ferramenta do Facebook usada por milhares de empresas de comunicação restringe ainda mais o filtro de notícias que cada usuário poderá ler em seu feed de notícias. O instant article acessa o acervo de notícias de um veículo de comunicação, seleciona apenas aquelas que se adequam ao perfil de cada leitor, resume e dispõe na linha do tempo de milhões de cidadãos os conteúdos noticiosos – texto, foto e vídeos – em formato otimizado para leitura em smartphones.

“Na prática, a maior parte das pessoas que acessam notícia pelo celular só lê os resumos, não raramente editados pelo Facebook”, disse a advogada Lefèvre. Em 8 de fevereiro último, o jornal Folha de São Paulo anunciou que deixaria de publicar notícias no Facebook porque a estratégia da rede social facilitaria a distribuição em massa de conteúdo deliberadamente mentiroso.

Confusão

O afunilamento do noticiário lido por usuários do Facebook, customizado conforme o interesse de cada internauta fragmenta ainda mais a noção de realidade na sociedade. O efeito é notado principalmente na percepção das pessoas com dificuldades em distinguir Facebook da internet.

De acordo com uma pesquisa divulgada em 2017 pela plataforma de internet Mozilla, a Internet Health Report v0.1, 55% dos brasileiros confundem a rede social Facebook e a internet. Na Nigéria, na Indonésia e na Índia, as porcentagens de pessoas que fazem a confusão foram de 65%, 63% e 58%, respectivamente. Nos EUA, o índice foi de apenas 5%.

Mudanças legislativas

Embora apontado como normativo capaz de mediar conflitos criados pela publicação de conteúdos na internet, o Marco Civil corre o risco de ser transfigurado pelo Legislativo. Segundo a ativista Bia Barbosa, que acompanhou a aprovação da lei no Congresso, em 2014, parlamentares propõem dois tipos de mudanças: a criminalização de quem produz e compartilha conteúdos que forem considerados ofensivos e a delegação às plataformas digitais – como o Facebook – ou agências de verificação de notícias o direito de censurar matérias e postagens.

A ativista alerta para o risco de retirar do Poder Judiciário o direito de julgar a legalidade dos conteúdos publicados e compartilhados na rede. “É mais prejudicial automatizar o processo de remoção de conteúdo sem decisão judicial. Não vai impedir a produção ou a disseminação de fake news, mas causa danos à democracia, pois, sem critérios conhecidos [o Facebook não divulga seus mecanismos de filtragem e distribuição de informações], não é possível saber que notícias foram bloqueadas. No jogo democrático, mais informação é melhor que a remoção de conteúdos informativos, sem critérios plurais e transparentes. Por isso é grande a importância nesse processo do Poder Judiciário, que tem legitimidade e condições para fazer esse julgamento e assegurar a liberdade de expressão”, afirma Bia Barbosa.

Em artigo, os professores de Direito Civil Guilherme Magalhães Martins e João Victor Rozatti Longhi alertam para o risco de dar aos provedores de conexão e redes sociais o poder da censura prévia. “A propaganda assume dimensões gigantescas, e viver passa a acarretar riscos colossais. Uma mentira dita mil vezes se torna uma verdade, como profetizou Joseph Goebbels, propagandista do III Reich nazista. Hoje, uma mentira compartilhada milhões de vezes em questão de segundos amplifica um dano em proporções dramáticas, que jamais poderão ser esquecidas ou deletadas”, lembram os professores.

Debate eleitoral

O Conselho de Comunicação do Congresso Nacional criou no início de março uma comissão de relatoria que tem como objetivo analisar os projetos de lei criados com o objetivo de combater notícias falsas da internet. Em outubro do ano passado, no entanto, o Congresso Nacional aprovou proposta de lei contrária ao texto do Marco Civil da Internet.

A lei obrigaria sites, aplicativos e redes sociais a retirar conteúdos da internet denunciados em até 24 horas, contados da notificação da pessoa ofendida. O presidente da República vetou a proposta, que integrava a Reforma Eleitoral que atualizou as regras para as eleições gerais deste ano.

A influência das fake news nas eleições de 2018 também motivaram o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) a criar um conselho consultivo para debater o tema. Têm assento no conselho instituições do Estado, como o Exército e o Ministério da Justiça, e representantes da academia e da sociedade civil organizada.

Uma dessas organizações, a SaferNet Brasil, sugeriu ao TSE medidas que deem transparência ao patrocínio de anúncios em redes sociais e estimulem o letramento digital da sociedade para avaliar a credibilidade de notícias, entre outras. O grupo de cientistas da computação, professores, pesquisadores e bacharéis em Direito que integram a SaferNet Brasil também se opõe a normativos que resultem em censura prévia ou responsabilização criminal por compartilhamento de conteúdo.

“Além de apresentarem grave potencial de restringir liberdades fundamentais que são tanto mais importantes no momento do debate político democrático, quais sejam a liberdade de expressão e de informação, apresentam o risco de serem potencialmente ineficazes para serem aplicadas à dinâmica da Internet, dada a necessidade de atuação veloz e que se balize pela prevenção e não pela atuação a posteriori”, afirmou Thiago Nunes de Oliveira, presidente da SaferNet Brasil.

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *